Crónica de Opinião – Lopes Guerreiro – 17/12/2024
Marco Abundância 17/12/2024
A crónica de opinião de Lopes Guerreiro.
“Natal da solidão”
“Tu que dormes à noite na calçada do relento numa cama de chuva com lençóis feitos de vento tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento, és meu irmão, amigo, és meu irmão”
Nunca como hoje estes versos de Ary dos Santos foram tão verdadeiros e mentirosos ao mesmo tempo. Verdadeiros porque há cada vez mais pessoas a viver ao relento e mentirosos porque muita gente não as vê como irmãos e acusam-nas de viver assim porque não querem trabalhar ou por outra razão qualquer.
E todos sabemos que assim não é. Se alguns, poucos, dos sem abrigo assim vivem porque querem, nada fazendo para evitar a situação, a esmagadora maioria caiu nessa situação por diversos infortúnios da vida, sendo, sem dúvida, o mais chocante o de pessoas que, apesar de trabalharem, não conseguem pagar uma casa onde possam viver com as condições mínimas de habitabilidade.
Os resultados do Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo revelam que em 2023 foram identificadas 13.128 pessoas nessa situação, incluindo 1.540 casais, ou seja mais 22% do que as assinaladas em 2022, o que por si só, evidencia que a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo não está resultar como, certamente, se perspectivava.
Aquele estudo concluiu que as principais causas das pessoas viverem em situação de sem-abrigo foi o desemprego ou precariedade no trabalho (25%), a dependência de álcool ou de substâncias psicoactivas (23%) e a ausência de suporte familiar (22%), que 72% são homens entre os 45 e os 64 anos, que o Rendimento Social de Inserção era a fonte de rendimento de cerca de metade e que dois terços tinham naturalidade portuguesa, sendo desconhecida a naturalidade de 12% delas.
Ao contrário do que alguns insistem em fazer crer, o número de migrantes sem-abrigo representa cerca de 15% do total e, como defende a presidente da CAIS, associação que ajuda pessoas em situação de vulnerabilidade social, a solução não passa por medidas restritivas para a migração, mas antes por receber todas as pessoas,
criando as condições mínimas para que possam viver no país, tal como nós.
Esta situação dos sem-abrigo é a ponta mais visível da pobreza que continua a existir, resultado das más políticas que facilitam a concentração da riqueza e não reduzem as desigualdades nem fomentam a coesão económica, social e territorial.
Não se pense que esse drama só existe nas grandes cidades, porque se existiam 3.378 pessoas sem-abrigo em Lisboa e 597 no Porto, existiam também 597 em Beja e 559 em Moura, ou seja, bem perto de nós, com algumas das quais nos cruzamos.
As inúmeras medidas lançadas pelos governos, e também pelas autarquias locais, para tentar mitigar a pobreza – e que alguns querem acabar -, sendo melhor que nada, em pouco têm alterado a grave situação vivida por cerca de um quinto da população portuguesa, sendo os mais atingidos os idosos e as crianças, para além de trabalhadores desempregados, com trabalho precário ou baixos salários.
A situação só se resolve com medidas estruturais que incentivem o crescimento económico e, o que é determinante, uma melhor distribuição da riqueza, quer através de políticas fiscais mais justas, quer do combate ao emprego precário e do aumento dos salários e pensões, quer ainda de melhores políticas públicas sociais, de saúde, educação e habitação.
Sem medidas estruturais como aquelas a pobreza manter-se-á e os problemas a ela associados também, por mais diversos subsídios e outras comparticipações que os governantes atribuam, que mais não fazem do que mitigar os problemas e, eventualmente, apaziguar a consciência de alguns perante o sofrimento de tantos.
Mas parece que quem manda e quem pode não quer que haja Natal para todos, pelo que me resta terminar, como comecei, com as palavras de Ary dos Santos:
“E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei és meu irmão, amigo, és meu irmão”.
Até para a semana! LG, 17/12/2024