Crónica de Opinião – Lopes Guerreiro – 04/02/2025
Marco Abundância 04/02/2025
A crónica de opinião de Lopes Guerreiro.
Escrutínio ou julgamento primário na praça pública?
O escrutínio, que nas suas origens mais remotas significava procurar algo de valor vasculhando o lixo ou desperdício, é entendido como um processo de exame ou investigação minuciosa. Pode implicar a busca por um erro oculto, distorção ou incongruência e ser aplicado a qualquer assunto, embora sendo mais comummente usado em contextos políticos ou eleitorais, referindo-se geralmente à observação ou avaliação crítica das ações ou políticas de um governo ou de seus agentes.
Como se pode verificar, passou-se a entender escrutínio como busca por algo errado que possa incriminar alguém em vez de procurar algo de proveitoso no meio do lixo ou do desperdício, em que parece ter-se transformado a sociedade em que vivemos.
Se estivermos atentos ao que hoje se passa nas redes sociais e em grande parte da comunicação social, verificamos facilmente que esta tendência se tem vindo a acentuar progressivamente, podendo-se afirmar que, através do escrutínio, se procura cada vez mais os podres, ignorando ou desprezando tudo o que possa ter valor.
A comunicação social, usando e abusando da precariedade dos jornalistas, principalmente dos que estão a iniciar as suas carreiras, procura e mexe em tudo o que “possa fazer sangue”. Usa e abusa das chamadas fontes anónimas e muitas vezes não cumpre o dever mínimo do contraditório, não ouvindo todas as partes, designadamente os que são apontados como tendo cometido algum crime, irregularidade ou agido de forma menos correcta, apresentando as versões das chamadas fontes anónimas como única versão dos acontecimentos.
Nas redes sociais vai-se ainda mais longe. Divulgam-se ou partilham-se notícias falsas sem ter o mínimo cuidado com a verificação da credibilidade da fonte.
E assim, em vez da avaliação crítica das acções dos poderes e seus agentes ou figuras públicas, assistimos muitas vezes à devassa da vida privada de pessoas sem qualquer relevância pública, ao falatório sobre o que não tem outro interesse que não seja o de gerar dúvidas e criar instabilidade ou a julgamentos primários na praça pública, sem dar aos atingidos a oportunidade de apresentarem as suas versões ou se defenderem.
Os inúmeros programas, com os denominados especialistas, de debate sobre política, futebol e social, e, nos últimos tempos também, sobre guerras, imigração e insegurança e Trump ocupam todo o espaço da televisão pública e das privadas, repetindo-se e esmiuçando acontecimentos e comportamentos dos seus alegados protagonistas, sempre na procura dos podres e do que possa fazer sangue.
De repente, surgiram, como os cogumelos, especialistas de tudo que têm normalmente a particularidade de terem pontos de vistas comuns e defenderem o mesmo, variando apenas no tom. E para que assim não pareça, surgem alguns poucos com pontos de vistas diferentes e a defender coisas diferentes, que são tratados como lunáticos e afectos ao que é obrigatório condenar, e são admitidos apenas para dar um arzinho de pluralismo aos programas e às televisões que os emitem.
E assim, à pala do escrutínio público, se vai construindo e alimentando uma narrativa única da realidade, que exclui outras versões e quem as defende, atenta contra as liberdades de expressão e de imprensa. Esta é a bolha mediática que apresenta como única verdade o que, muitas vezes, não é mais do que uma construção, que a vida, mais cedo ou mais tarde, acaba por desmontar. O problema maior é que isso, algumas vezes, acontece tarde de mais sem que os danos causados possam ser reparados.
Vivemos tempos em que há muita informação e conhecimento disponíveis e pouco sentido crítico para com eles lidar. Somos treinados para assimilar tudo o que nos apresentam tal como nos apresentam, como se não passássemos de mata-borrões. Não somos preparados para nos interrogar-nos, com espírito aberto e sentido crítico, sobre o que vemos, ouvimos e lemos. Assim é mais fácil amocharmos e procedermos como os carneiros, seguindo o pastor, com a ajuda dos cães.
Perante um muro que precisamos de ultrapassar, devemos tentar saltá-lo por cima ou, se não conseguirmos, procurar contorná-lo, através de outro caminho. Derrubá-lo à cabeçada não é solução, apesar de alguns insistirem nela. Precisamos de sentido crítico para encontrarmos o melhor caminho.
Até para a semana!
LG, 04/02/2025